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Adaptação de ilustração de Gunduz Agayev.

Adaptação de ilustração de Gunduz Agayev.

A guerra pode ser a diplomacia por outros meios, mas uma guerra não termina sem a mobilização da diplomacia; nenhum acordo de paz é possível sem que anjos e demônios negociem entre si.


O artigo “Bem-vindo ao deserto do real”, que publiquei aqui no Velho General no último dia 14 de agosto, provocou diversas reações. Algumas muito favoráveis. Outras fortemente contrárias. Mas a maior parte completamente atônita em perplexidade. Essa perplexidade – muitas vezes, elaborada em manifestações amigas e gentis – possui sua razão de ser. Sugere a necessidade de continuação do diálogo. Quem sabe, também, das provocações.

O mal-estar neste quarto de século, como aludido no artigo anterior, é progressivamente agudizado pela consciência coletiva da incapacidade das teorias vigentes em produzir uma explicação convincente sobre o que se passa, as razões de tantas desilusões e o que esperar de um futuro tangido por um mundo tão estanho. O presidente Emmanuel Macron, como também indicado anteriormente, lançou mão da noção de “descivilização” como chave de interpretação para dessa aterradora pasmaceira. Conseguintemente, uma grande euforia tomou conta dos debates de sociedade na França, na Europa e nos Estados Unidos. Notou-se, pertinentemente, que, pela primeira vez na história das ideias políticas, a noção de anomia perdeu, integralmente, a sua funcionalidade. Deixou de indicar a complexidade dos eventos. E legou à “descivilização”, mesmo menos precisa, o refúgio para interpretações.

“Descivilização”, desde muito, vem sendo utilizada por movimentos ultranacionalistas para justificar medidas extremas ante a aceleração da fragilização dos valores ocidentais no Ocidente e mundo afora. Qualquer representante verdadeiramente vertebralizado de qualquer segmento nacionalista extremista ou de extrema-direita na Europa, nos Estados Unidos, no Brasil e alhures, deseja reabilitar os valores conservadores que fundamentaram o Ocidente. Especialmente aqueles relacionados a uma verdadeira cristandade – primitiva ou renovada; católica ou protestante – que consubstanciou o modelo de família, autoridade, estado e poder durante toda a Modernidade.

O presidente francês está longe de se enamorar por essas tendências ultraconservadoras. Diferentemente dos extremistas que empregam “descivilização” no atacado, ele mobiliza o termo no varejo.

Em sua impressão – depositária dos ensinamentos de seu mestre Paul Ricoeur –, o império da horizontalidade tem estraçalhado toda possibilidade de afirmação de algum nível de hierarquia. Sem hierarquia não existe autoridade. Sem autoridade, desaparece a ética de responsabilidade. Sem alguma responsabilidade, tudo vai ser permitido. E, nessa permissividade, o conjunto das relações no Ocidente vem naturalizando a ausência de pudor, decência, bom gosto, elegância, polidez, educação, gentileza, sutileza, humor, cortesia, cortesania, o retorno da violência gratuita e a explosão dos impulsos.

Nada disso joga água em moinhos de qualquer bem-estar. Ao contrário. Denota regressão. Regressão da civilidade e deformação da civilização. Algo, portanto, muito mais profundo que uma mera anomia. Algo que informa uma “descivilização”.

A inspiração do presidente francês sobre “descivilização” remonta ao sociólogo Norbert Elias (1897-1990) e ao seu clássico Über den Prozess der Zivilisation (O processo civilizador, em português) de 1939. Inegavelmente uma referência erudita. Incontestavelmente uma das mais oportunas para o debate. Desafortunadamente um oceano de controvérsias.

O núcleo da intenção de Norbert Elias repousava na sua convicção da necessidade de revisão do preceito de Immanuel Kant sobre a civilização assim como da superação da concepção de Max Weber sobre a inquestionabilidade do monopólio estatal da violência. Nesse sentido, o coração epistemológico de sua obra sobre o processo civilizador promove uma complexa separação ontológica entre civilização e cultura e atribuiu à formação histórica de códigos e normas o elemento mais definitivo da evolução da civilidade e da consolidação da civilização. Códigos e normas, segundo ele, tornam indivíduos diferentes em pessoas comuns. Pessoas que se identificam em convívios da mesa à cama à rua.


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Em sua demonstração, o processo civilizador na Europa teria sido a expressão de uma progressiva educação de sentidos desde a intimidade mais privativa até a interação social mais expansiva. A evolução dessa educação, seguia ele, teria influído na sociogênese do estado no Ocidente. Uma sociogênese que complementou o processo civilizador e tornou as instituições ocidentais superiores em legitimidade, racionalidade, impessoalidade, confiabilidade e autoridade.

A complexidade desse arranjo veio a público somente em 1969, trinta anos depois de sua formulação em 1939. Uma vez publicado, o estudo apreendeu uma tímida recepção na Alemanha e na Holanda ao longo dos anos de 1970 e precisou chegar aos anos de 1980 para receber uma alentada publicação na França para se tornar uma referência mundial incontornável do debate.

Após um imenso sucesso de público e de crítica, a tese passou a ser violentamente criticada; ainda nos anos de 1980, mas especialmente nos anos de 1990. Os seus maiores algozes foram, claramente, o alemão Hans Peter Duerr e o norte-americano Samuel P. Huntington.

Hans Peter Duerr dedicou longos anos e cinco volumes para denunciar o “mito do processo civilizador” enunciado por Norbert Elias. Marinado numa epistemologia crítica inspirada nas teses de Feyerabend, Duerr se contrapôs à dimensão claramente evolucionista e etnocêntrica da obra do sociólogo polonês. Em sua análise, o ponto-cego de Norbert Elias residia na hipervalorização da Europa/Ocidente – Alemanha e França especialmente – em detrimento do resto do mundo. Diferente do que sugeria Elias, Duerr percebia que ao Ocidente jamais coube o monopólio da civilidade nem da superioridade civilizacional.

Samuel P. Huntington, por sua vez, endossa a reprimenda de Duerr, mas vai além. Com a sua tese do “choque de civilizações” – que provoca debates acalorados até hoje –, ele reconhece a existência, além do Ocidente, de uma multiplicidade de civilizações pujantes e complexas espalhadas pelo mundo. Todas assentadas em códigos de espiritualidade – cristianismo, hinduísmo, confucionismo e outros. E todas, praticamente, todas, após o fim Guerra Fria, tornadas rivais inveteradas do Ocidente. Ou seja, todas em rota de colisão e choque.

Norbert Elias morreu em 1990 sem tomar conhecimento dos desdobramentos desses antagonismos. Mesmo assim, justiça seja feita, ele estava ciente das limitações de sua tese desde o início. Desde 1940, quando a experiência do nazismo, o extermínio de judeus e a tragédia geral da Segunda Guerra Mundial ficaram evidentes, o núcleo de seu argumento foi invalidado. Virou impossível reconhecer a “superioridade” do processo civilizador na Europa. O chão de ruínas da guerra não poderia ser entendido como avanço de civilidade nem de exemplo de civilização. Ao contrário.

Para, portanto, remediar essa falseabilidade, na prática, de sua análise, Norbert Elias passou a flexibilizar a noção de “processo”. O “processo”, em sua abordagem, passou a ser reconhecido como algo mais móvel que estático. Mais dinâmico que evolucionário. Mais complexo, portanto, e também passível de degeneração, regressão, “descivilização”. Ou seja, uma civilização pode se degenerar e regredir para se “descivilizar”.

O presidente Emmanuel Macron mobilizou essa noção de “descivilização” integralmente ciente dessa sua dimensão tortuosa. O seu interesse, claramente, não projeta discutir as aventuras epistemológicas do gigante sociólogo que foi Norbert Elias. A sua intenção parece ser a de anunciar a iminência de um caos sistêmico similar ao vivenciado na noite escura de 1914 a 1945.


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1914-1945 foi o único momento de “descivilização” generalizada registrado. Os episódios anteriores de caos sistêmico foram anteriores à consolidação das civilizações modernas. A pasmaceira generalizada deste início de século XXI seria a anunciação de uma nova “descivilização” e de um novo caos sistêmico? O líder francês parece sugerir que sim. Mas ele não está sozinho nessa anunciação.

O presidente Mikhail Gorbatchev, um pouco antes de morrer, há exatos doze meses, a 30 de agosto de 2022, em Moscou, chamou a atenção de autoridades do mundo inteiro para a gravidade da conjuntura de tormentas deste século. Em seu entender, as tormentas conquistaram uma dimensão inédita com a nova fase da tensão russo-ucraniana e teriam lançado o mundo inteiro no momento mais perigoso de toda a história da humanidade. Um momento de caos, incompreensão e desesperação. Um período de indiferença. Uma nova “descivilização” onde ninguém respeita ninguém, ninguém escuta ninguém e ninguém deseja verdadeiramente o bem de ninguém.

Essas considerações do velho líder soviético foram, inicialmente, ignoradas ou ouvidas com indiferença. No fundo, com muita preguiça e desmedida incompreensão.

Com o passar do tempo e a instalação do conflito no cotidiano comum de todos, a mensagem do presidente Gorbatchev começou a ser decodificada. Observadores internacionais começaram a se despir de autoenganos e iniciaram uma análise fria das questões em contenda. Conseguintemente, começou-se a entender que quando o presidente Putin afirma, reiteradamente, que “não há sentido em um mundo sem a Rússia”, ele não está blefando. Do mesmo modo, que quando o presidente ucraniano informa que seu povo está disposto a guerrear “até o último homem”, ele não está desamparado.

Nem russos nem ucranianos se esqueceram da carnificina de Stalingrado. E nada os impede de revivê-la, se preciso for.

Era disso que dizia o presidente Mikhail Gorbatchev: a incivilidade de outrora voltou a tomar conta de Kiev e Moscou. Agora de um contra o outro. Mas com mais um agravante: Kiev e Moscou não se falam mais. É a primeira vez na história de tensões e conflitos, desde a Guerra do Peloponeso, que as partes envolvidas deixaram de parlamentar.

Carl von Clausewitz sabia e todos sabem: a guerra pode ser a diplomacia por outros meios, mas dificilmente uma guerra encontra o seu fim sem a mobilização de muitos meios da diplomacia. Nenhum acordo se torna possível sem que anjos e demônios negociem entre si. Nenhum compromisso suportável consegue ser estabelecido sem esse entrecruzar inconveniente de mãos. Nenhum contrato de paz durável se constrói na desonra. Nenhum lugar ao sol se consolida sem o mínimo de civilidade.

Bem-vindo ao deserto do real. Rússia, Ucrânia, França, Estados Unidos, Brasil, Ocidente, mundo inteiro. Não há para onde fugir. Não adianta chorar. Não se deve espernear. Só nos resta encontrar impulsos para voltarmos a nos civilizar.

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1 comentário

  1. Excelente artigo para nos trazer à realidade nua e crua: para se alcançar a paz no conflito russo-ucraniano será necessário um mínimo de diálogo, o que parece não ser o caso para o momento!

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